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Quando a boca cala, o corpo fala: A dança como linguagem do indizível

  • Foto do escritor: Ao Redor - Cultura e Arte
    Ao Redor - Cultura e Arte
  • há 2 dias
  • 3 min de leitura
O corpo sabe coisas que a mente ainda não compreendeu.

Às vezes, dançar é tudo o que resta. Quando o nó na garganta não se desata, quando a fala tropeça, quando o pensamento não alcança — o corpo dança. Não por escolha racional, mas por necessidade de dizer o que não se diz. A dança, nesse lugar, não é enfeite nem performance: é grito, é reza, é memória que insiste. O que acontece quando dançamos que não acontece quando falamos? O que o corpo comunica que a linguagem verbal não abarca? É nesses espaços que a dança se move: entre o indizível e o indomável.


Antes da palavra, há o corpo. Antes da frase, o gesto. Antes da história, o movimento. O corpo é nossa primeira linguagem. Ainda bebês, nos comunicamos com olhares, tensões, impulsos. Essa comunicação pré-verbal continua presente — em sutilezas que muitas vezes ignoramos: um suspiro, um encolher de ombros, um afastar de pés. O teórico Rudolf Laban já entendia o movimento como uma forma de linguagem humana total. Para ele, o corpo em movimento expressa intenções, afetos e estados internos, mesmo quando não há espectador.


Há coisas que não cabem no discurso. Traumas, desejos, ancestralidades, angústias ou epifanias que se recusam a ser nomeadas — mas que o corpo insiste em mover. O teórico e crítico André Lepecki escreve sobre o corpo como potência política e expressiva, afirmando que a dança está diretamente ligada ao risco, ao desaparecimento, à efemeridade. É justamente nessa condição fugidia que reside sua força: a dança diz o que o sistema não consegue controlar, o que escapa à lógica do consumo e do registro. Quando uma dançarina treme, cai ou paira no ar, ela pode estar dizendo tantas coisas. Não porque sua dança "representa" algo, mas porque ela é — e ser, às vezes, já é subversão suficiente.


O corpo é um arquivo vivo. Ele não apenas sente o presente, mas guarda vestígios do passado — individuais e coletivos. Carrega as marcas do tempo, das histórias familiares, das culturas às quais pertence (ou das quais foi arrancado). A pesquisadora Diana Taylor propõe a noção de repertório, contrapondo-o ao arquivo escrito. Enquanto o arquivo é estático e formal, o repertório é vivo, performativo, transmitido pelo corpo. Assim, dançar é ativar esse repertório de experiências, muitas vezes inconscientes ou silenciadas, e torná-las visíveis. Nas criações coreográficas, costumo perceber que nem sempre é o conceito que gera o movimento. Muitas vezes, é o gesto que revela o que o pensamento ainda não alcançou. O corpo fala primeiro — e depois a gente entende.


Dançar é perceber com a pele, com os ossos, os silêncios entre os impulsos. Essa escuta profunda permite acessar regiões internas que as palavras nem sempre alcançam. Noemi Lapzeson, coreógrafa e pedagoga da dança, dizia que “dançar é pensar com o corpo”. Essa ideia rompe com a dicotomia entre mente e corpo, reafirmando a dança como prática de pensamento. Uma prática que pensa o mundo não por meio de conceitos, mas por meio de sensações, relações, intensidades. Essa escuta também se dá no coletivo. Em oficinas de dança criativa com crianças ou em processos de criação com intérpretes, percebo como o movimento pode ser um canal de escuta entre corpos — uma conversa silenciosa, mas cheia de sentido.


Quando dançamos, mesmo sem querer convencer ninguém, o mundo escuta. Não com os ouvidos, mas com a sensibilidade de quem reconhece no outro um espelho. A dança é linguagem, sim. Mas é uma linguagem que não se traduz — se sente. Ela habita os vazios entre o que se sabe e o que se ignora. Ela é, muitas vezes, a única forma de dizer: “eu estou aqui”, quando tudo parece tentar nos calar. Inscreva-se em nosso blog para receber outras publicações sobre arte e cultura


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