Resistir sem ferir, florescer no asfalto
- Ao Redor - Cultura e Arte
- há 5 dias
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Não-violência como resposta à estética do ódio.
A semente da dor
Há dores que não pertencem apenas a um indivíduo, mas a uma época inteira. A sensação de que o ferro voltou a ser exaltado é uma dessas dores. Em discursos que incitam o ódio, em gestos que banalizam a violência, em símbolos autoritários que retornam com novas cores e velhas intenções, a sociedade se vê diante de uma sombra que acreditava superada. É nesse terreno que ressoa um provérbio antigo, inscrito nos Evangelhos: “Quem com o ferro fere, com o ferro será ferido.” Mais que advertência moral, a frase descreve uma engrenagem histórica: a violência, uma vez legitimada, retorna contra todos. Quando o ferro se torna norma, o ferro não poupa ninguém.
O início do século XXI parecia carregar a lição das guerras mundiais: a barbárie do fascismo teria ficado no passado. Mas a história não é linha reta. Move-se em curvas, em espirais, em ressurgências. Hoje, a extrema-direita cresce em diferentes partes do mundo, alimentando-se do medo e do ressentimento. O que oferece não é apenas um programa político, mas uma estética e uma emoção. Sempre há um inimigo a ser apontado, sempre há um bode expiatório a ser punido. O espetáculo da força reaparece como promessa de solução.
O fascismo sabe que a violência não é apenas força bruta, mas também sedução. Ele mobiliza afetos: medo, raiva, desejo de vingança. E contra afetos não bastam estatísticas ou discursos técnicos. É preciso outro imaginário, capaz de desarmar a lógica da violência.
O gesto da recusa
É nesse ponto que a tradição da não-violência se torna urgente. Não se trata de resignação, mas de resistência. Não-violência não significa ausência de conflito, mas escolha de outro método de enfrentamento. Gandhi a chamou de satyagraha — firmeza na verdade. Martin Luther King Jr. afirmou que apenas a luz poderia expulsar a escuridão, apenas o amor poderia desarmar o ódio. Dom Hélder Câmara, no Brasil, falava de revolução dentro da paz. Em todos esses casos, a não-violência não foi caminho fácil, mas coragem árdua: recusar-se a responder com o mesmo ferro que fere, interromper o ciclo da repetição.
Quatro movimentos do cultivo
A não-violência não é técnica a ser aplicada mecanicamente, mas cultivo contínuo. Exige treino da sensibilidade, clareza do pensamento, coragem da ação e enraizamento espiritual. Pode ser aprendida como uma música em quatro movimentos, que retorna sempre em espiral: sentir, refletir, agir, espiritualizar.
Sentir – a arte que desarma
A sensibilidade é a primeira trincheira contra a violência. Antes de qualquer teoria, é preciso tocar o coração e reaprender a delicadeza.
Alê Abreu – O Menino e o Mundo (2013): animação brasileira que contrapõe a dureza da industrialização à poesia do olhar infantil.
Matsuo Bashō – Haikais (séc. XVII): poemas breves que captam a delicadeza do instante, mostrando que a atenção plena é antídoto contra a brutalidade.
Gilberto Gil – Se Eu Quiser Falar com Deus (1980): música introspectiva em que a busca pelo divino passa pelo despojamento interior.
Chico Buarque – Apesar de Você (1970): resposta irônica à ditadura militar, aposta na esperança como resistência.
Refletir – o pensamento que interroga
Pensar é desarmar a naturalização da violência. A crítica mostra que ela não é destino, mas construção histórica.
Lev Tolstói – O Reino de Deus Está em Vós (1894): manifesto contra a violência estatal, inspiração para Gandhi.
Sobre a Violência (1970): o discurso de Arendt sobre a não-violência não é um pacifismo simples, mas uma teoria sofisticada sobre o poder. Ela defende a não-violência como a forma mais autêntica e poderosa de ação política
Albert Camus – O Homem Revoltado (1951): ensaio sobre a revolta ética, que não se deixa seduzir pelo assassinato.
Bartolomé de las Casas – Brevísima relación de la destrucción de las Indias (1552): denúncia da barbárie colonial contra os povos originários da América.
Eduardo Coutinho – Cabra Marcado para Morrer (1984): documentário brasileiro que resgata a memória de camponeses perseguidos, revelando a persistência da esperança.
Ziad Doueiri - O Insulto (2017): o filme explora a escalada de um desentendimento entre um libanês cristão e um refugiado palestino mostrando como a violência verbal e a falta de empatia reavivam traumas históricos.
Agir – a coragem pública
A não-violência só ganha corpo quando se traduz em ação. É na prática que se mostra sua força transformadora.
Mahatma Gandhi – Minha Vida e Minhas Experiências com a Verdade (1927): autobiografia do líder indiano que fez da não-violência sua arma contra o império britânico.
Martin Luther King Jr. – Strength to Love (1963): sermões que unem fé, coragem cívica e amor como força política.
Nelson Mandela – Long Walk to Freedom (1994): memórias da resistência ao apartheid, exemplo de perdão ativo e reconciliação.
Jean-Marie Muller – O Princípio da Não-Violência (2006): reflexão filosófica contemporânea sobre a não-violência como prática política.
Richard Attenborough – Gandhi (1982): filme épico sobre a vida do líder indiano.
Ava DuVernay – Selma (2014): retrato da marcha pelos direitos civis liderada por Luther King.
Espiritualizar – raízes profundas
A não-violência se enraíza em tradições espirituais diversas, como um rio subterrâneo que nutre culturas e épocas diferentes.
Buda – Dhammapada (séc. III a.C.): versos que ensinam: “o ódio nunca é apaziguado pelo ódio, mas pelo amor.”
Jesus Cristo – Sermão da Montanha (Mateus 5–7): ensinamentos que proclamam bem-aventurados os pacíficos e os mansos.
Lao-Tzu – Tao Te Ching (séc. VI a.C.): texto taoista que exalta a suavidade como força transformadora.
Jainismo – Acaranga Sutra (séc. V a.C.): escritura que define o ahimsa, a recusa absoluta de ferir qualquer ser vivo.
Iconografias de Kannon/Guanyin: imagens do Bodhisattva da Compaixão, representação da ternura como poder espiritual.
Entre a ferida e a cura
A violência de nosso tempo é ferida coletiva. Mas ferida também pode ser semente. A não-violência oferece caminho para que essa dor não se transforme em veneno. Enquanto o fascismo promete ordem pela exclusão, a não-violência propõe comunidade pela criação. Enquanto o fascismo se alimenta do medo, a não-violência se sustenta na coragem. Enquanto o fascismo impõe silêncio, a não-violência recria a palavra, a arte, a memória. Resistir em tempos sombrios é também um ato de imaginação. Imaginar que ainda é possível dizer “não” ao ferro e “sim” às flores que insistem em nascer no asfalto. Imaginar que a maior coragem não está na espada, mas na recusa de ferir. Imaginar que a ternura, tantas vezes ridicularizada, pode ser raiz de um mundo novo.
O provérbio bíblico lembra: quem com o ferro fere, com o ferro será ferido. Mas a história não precisa ser prisioneira dessa engrenagem. É possível interromper o ciclo, recusar a lógica da violência, inventar outro horizonte. Em tempos sombrios, a não-violência não é rendição, é ato criador: transformar a dor em gesto, o medo em imaginação, o silêncio em palavra. É insistência em cultivar vida onde o deserto se anuncia.
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