A Carne, a Infância e o Tiro: Três Tempos da Mesma Ferida
- Ao Redor - Cultura e Arte

- há 4 horas
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Há canções que não envelhecem; apenas cicatrizam mal. Elas continuam ecoando entre uma tragédia e outra, como se o país não aprendesse a enterrar seus mortos. De década em década, o Rio de Janeiro é atravessado pela mesma bala. A diferença é que o calibre muda; o corpo, não.
Três músicas, distantes no tempo, revelam a mesma ferida aberta: a infância interrompida, a carne exposta e o tiro que não erra o alvo.
1. Gabriel o Pensador – Homenagem às Crianças Vítimas da Violência no Rio (2018)
Em fevereiro de 2018, Gabriel o Pensador apresentou ao Fantástico um rap que soava como réquiem e revolta. Reapropriando o bordão pop “Que tiro foi esse?”, ele recusa a “queda de faz-de-conta” e desloca o meme para a denúncia. O Rio, recém-saído das Olimpíadas, vivia uma escalada de homicídios; e o poeta transformou o noticiário em testemunho. Ao fundo, o surdo de João da Serrinha marca um compasso de cortejo — o coração grave que converte a notícia em rito.
“Criança, meu irmão, não é estatística, é gente, alguém de verdade.”
Na letra, Gabriel cita nomes reais — Emilly, João Pedro, Luis Miguel — meninos e meninas mortos por balas “perdidas”, quase sempre achadas no corpo certo. A canção é um inventário de tragédias cotidianas, um espelho daquilo que o Estado insiste em chamar de “fatalidade”.
O rap aponta o dedo para a corrupção, a covardia e a inversão moral de um país que transforma o medo em política. Ele escreve com o rigor de quem se recusa a naturalizar a barbárie: “a violência estúpida afeta todo mundo, menos esses vagabundos lá da cúpula corrupta e nojenta que alimenta essa guerra; e da guerra há muito tempo se alimenta.”
Em 2018, Gabriel já dizia o que Oruam repetiria anos depois: a guerra tem dono, e a morte tem preço.
2. Elza Soares – A Carne (2002)
Quando Elza canta “A carne mais barata do mercado é a carne negra”, o verso corta mais fundo do que qualquer manchete. A canção, escrita por Marcelo Yuka, Ulisses Cappelletti e Seu Jorge, não fala de racismo como conceito, mas como cotidiano: prisão, plástico, pobreza; o tripé da necropolítica brasileira.
Elza não canta para entreter; ela evoca. Sua voz é tambor e ferida, lamento e maldição. A cada palavra, um século de escravidão se recusa a morrer. A Carne é o espelho mais cruel do Brasil: um país que aprendeu a lucrar com o sangue que derrama.
“A carne mais barata do mercado
é a carne negra,
que vai de graça pro presídio
e pra debaixo do plástico.”
3. Oruam – Desabafo após a Chacina de 28 de Outubro de 2025
Sete anos depois de Gabriel e vinte e três após Elza, a história se repete; agora transmitida em tempo real. Mais de 120 pessoas foram mortas na Penha e no Alemão, naquilo que a imprensa chamou de a maior chacina da história do Rio de Janeiro.
Oruam, filho de Marcinho VP, gravou seu desabafo nas redes, em tom de manifesto: “Em 28 de outubro de 2025, aconteceu a maior chacina da história do Rio de Janeiro. Meu nome é Mauro David dos Santos de Nepomuceno, mais conhecido como Oruam. […] Eu sou reflexo da sociedade, meu pai é reflexo da sociedade, e o bandido que está portando o fuzil também é reflexo da sociedade.”
A declaração seguiu com a mesma contundência: “A mídia descobriu que matar bandido vende muito. […] No Brasil, a política que mais vende é a de matar bandido. A sociedade gosta do banho de sangue. […] Usa o bandido como o maior vilão para esconder o verdadeiro bandido; que estão em grandes mansões; que paga o governo todo para não ser visto. O crime não tá só na favela; o crime está no governo, o crime tá nas câmeras, o crime está em Brasília. O favelado é só um reflexo da sociedade.”
O artista encerrou nos stories com um lamento que é também oração: “Minha alma sangra quando a favela chora, porque a favela tem família. Se tirar o fuzil da mão, existe o ser humano.”
Oruam não canta, denuncia. Ele não observa a dor; ele a habita. Sua fala não é discurso político nem música: é um testamento da sobrevivência. É a terceira voz do mesmo país que Gabriel e Elza já haviam anunciado. O grito agora vem de dentro do fogo.
O mesmo país, em três tons de dor
Elza denunciou o corpo negro transformado em mercadoria. Gabriel denunciou a infância assassinada. Oruam denuncia a permanência do massacre. O que muda é o vocabulário da violência; o que não muda é a indiferença que a sustenta. Essas três vozes são estágios de uma mesma revelação: a dor que o Brasil tenta esquecer volta sempre em outra forma. E talvez essa seja a função mais sagrada da arte: lembrar o que o país tenta apagar. O que Elza gritou, Gabriel chorou, e Oruam sangrou. E nós, que ouvimos, precisamos responder.
Para Ver e Ouvir
• Elza Soares — A Carne (2002)
Link - YouTube
• Gabriel o Pensador — Homenagem às Crianças Vítimas da Violência no Rio (2018) — com João da Serrinha (surdo), Fantástico
Link - YouTube
• Oruam — Desabafo após a Chacina de 28 de Outubro (2025)
Link 1 - Instagram
Link 2 - Instagram
Nota do Ao Redor
A arte é o espelho onde o país mais teme se ver. Cada verso citado neste texto lembra que a violência não é acidente; é projeto. E que, diante dela, calar também é escolher um lado. Por isso, insistimos: política pública de segurança sem política pública de futuro é repetição de tragédia. É urgente investir, de modo contínuo e territorial, em educação básica de qualidade, escola em tempo integral, bibliotecas vivas, esporte, ciência, tecnologia, cultura e circulação de obras, com editais e equipamentos culturais nos bairros, formação artística e acesso real à cidade. Educação e cultura não são adereços: são o antídoto civilizatório, a trincheira onde vidas deixam de virar número e destinos deixam de terminar em manchete.
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