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  • Foto do escritorAo Redor - Cultura e Arte

Deixa o Bloco Passar

Atualizado: 19 de mai. de 2021

Quando o bloco terminou de passar eram quase oito da noite. O dia de desfile havia sido belíssimo, como todos os outros. Novamente, Celeste acompanhou tudo direto da sacada de seu apartamento. Seu coração ansiava pela multidão, por estar entre os foliões, por poder comemorar a data que ela tanto amava. Sempre que o carnaval chegava, Celeste sentia uma sensação de renovação. Em sua adolescência, flertava com todos os menininhos, e as investidas em alguns ia muito além de uma simples conversa.


“Ah, como sinto saudade destes tempos. Quase que podia sentir a liberdade correr por entre minhas veias. O timbre dos instrumentos entravam em meus ouvidos e...” Seu monólogo fora interrompido por algo perto de seus pés. Alguém estava puxando a barra de seu vestido de seda. Era Carolina, sua filha de cinco anos; fruto do relacionamento com Marco.


Marco, este que há pouco havia falecido de causas naturais, nunca fora um marido exemplar. A traía constantemente, causava-lhe crises de pânico frequentes e chegou a fazê-la pensar em pedir pelo divórcio. Mas todo e qualquer pensamento, de uma atitude mais decisiva ou um vão pensamento, se detinha quando ela pensava na pequena Carolina. Linda menina de cabelos encaracolados louros, olhos azuis, nariz parece que desenhado pela ponta de um pincel em uma tela de canvas.


“Mamãe, quando iremos ver o papai?” Perguntou Carolina, com aqueles olhos de cachorro que acabara de cair da mudança e não sabe para que lado foi seu dono.


Celeste, então, agarrou gentilmente a menina pela mão e a guiou até a sala de estar. Era um lugar aconchegante, com ar-condicionado, uma bela mesa de vidro tão claro que podia-se ver o chão encarpetado. Chão, este, tão fofo que remetia ao desfazer de um algodão doce no palato da boca. “Querida, lhe disse isso uma vez, mas papai não voltará mais. Agora, ele está com seu irmãozinho Patrick e a vovó Cátia.” Agora era Celeste que se controlava para não chorar. Seus belos olhos castanhos estavam marejados.


“Mesmo? E por que não?” A voz de Carolina embargara. Celeste sabia que ela estava prestes a chorar. E não há nada pior para uma mãe do que ver sua filha sentir algo tão controverso e fora de controle, o tipo de sentimento onde não há controle. Tudo que se pode fazer é trazê-la para perto de si, afagá-la em um abraço carinhoso e acariciar suas costas em círculos até que o choro saia.


“Papai estava doente. Ele se cuidou com um médico, mas apesar dos esforços, teve que nos deixar. Mas tente pensar pelo lado bom. Patrick não está mais sozinho. Tampouco está vovó Cátia.” E pronto. Assim, num estalar de dedos, num mero piscar de olhos, a menina desabou a chorar. “Eu quero meu pai! Eu quero meu pai!” E Celeste sabia o que devia fazer. Puxou-a para um abraço apertado, e deixou que a filha pusesse para fora toda a tristeza que estava guardando para si.


Celeste colocou a menina na cama, fez questão de esperar que ela fosse dormir, e depois encaminhou-se para a sacada do prédio. Pegou seu celular, digitou alguns números e após duas chamadas foi atendida.


“Celeste?” Uma voz masculina respondeu do outro lado da linha.


“Como é bom ouvi-lo.” Replicou Celeste. “Eu precisava disso.”


“Está tudo bem? Carolina está bem?” O homem parecia genuinamente preocupado.


“Sim, está. Acabou de dormir. É o mesmo de sempre. Nesse momento da noite ela pergunta pelo pai. Acho que está acostumada com o horário que ele chegava do serviço e tudo mais. Então pergunta por ele e desaba a chorar. E depois dorme como um carneirinho.”


Celeste se permite uma risada, mas logo se contém. Há algo errado com o que ela sente agora. Parece errado sentir felicidade. Parece muito errado sentir-se livre para rir, conversar com outro homem, sentir-se bem, depois de tantos anos vivendo um relacionamento que significava completamente o oposto do que ela vive agora.


“E você? Como está?”


“Bem.”


E há uma pausa. Uma pausa constrangedora. Celeste sabe que há mais por vir. O homem, do outro lado da linha, também sabe.


E então Celeste desaba a chorar.


“Neste final de tarde eu estava olhando pela bancada e vi o bloco de carnaval lá embaixo. Minha vontade era colocar uma fantasia na Carolzinha e levá-la para o meio da multidão. Queria me envolver com aquele pessoal, sabe?” Ela pausa para um choro, longo e tortuoso. “Queria que minha filha se sentisse livre também. Feliz. Não quero que ela sinta o que eu senti.”


O silêncio se perdura.


“E por que você não faz isso agora?” O homem a questiona.


“Agora? Eu acabei de colocá-la para dormir.” Indaga Celeste, enfurecida. Seus passos até o quarto de Carolina se apressam e ela percebe que a luz está acesa. “Ou talvez ache que tenha.”


“Leve-a, Celeste. Aproveite. Você merece. Não haverá outro carnaval até o próximo ano. Só se vive uma vez, não é isso que o ditado diz?”


E rápido assim, a ligação se encerra.


Celeste corre até o armário, escolhe uma fantasia para Carolina e depois vai até seu quarto escolher uma para si mesma.


Pouco tempo depois, ambas estão entre os foliões, pulando de alegria, sentindo o calor humano, ouvindo as risadas, as vozes, o timbre alto das músicas. E é como se todo o mundo ao redor se silenciasse, todas as pessoas fossem embora. E ali só houvessem mãe e filha. Uma única carne. Completas.


Autoria de Cleiton Lisboa


Sobre o autor

A escrita de Cleiton Lisboa se debruça na construção de personagens femininas e tem como principal inspiração as mulheres fortes que conhece e que lutaram para conseguir uma vida feliz.

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