Cultura e Estudo: o que o Brasil ainda não aprendeu
- Ao Redor - Cultura e Arte

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Por que um país tão fértil em cultura ainda tropeça quando o assunto é educação?
Há uma confusão entre cultura e estudo que abordaremos aqui antes de partirmos para a crítica proposta por este artigo. Tal abordagem concentra-se na diferenciação entre a cultura vivida e a educação formal. Ambas fazem parte da cultura de um povo, mas se desenvolvem por caminhos distintos. Pelo ponto de vista antropológico e acadêmico, “cultura” é um conceito abrangente, que engloba tudo aquilo que um grupo humano cria, aprende, compartilha e transmite: costumes, valores, linguagem, arte, tecnologia, crenças, modos de vida.
Cultura, no sentido amplo e conceitual, inclui tanto o saber tradicional, corporal, comunitário, quanto as instituições formais de ensino. O estudo ou educação formal é um subsetor da cultura — uma de suas formas institucionalizadas de transmissão de conhecimento. Uma nasce da experiência compartilhada — das ruas, das festas, das palavras inventadas; a outra se organiza pelas estruturas — pelos livros, leis e salas de aula. O problema é que, neste país, esses caminhos raramente caminharam juntos: onde o saber do cotidiano floresceu com abundância, o ensino institucionalizado chegou tarde, cansado ou, muitas vezes, não chegou.”
O país que começou educando para obedecer
A história da educação brasileira começa sob a sombra do altar. No Brasil colônia, aprender era sinônimo de submeter-se. Os jesuítas, desde 1549, ensinaram a ler para catequizar, e não para libertar. A escola era uma extensão da igreja: moldava almas dóceis, apagava saberes indígenas e africanos, e silenciava quem não se encaixava.
Quando o Marquês de Pombal expulsou os jesuítas em 1759, a educação entrou em ruína. O que restou foram escolas improvisadas e uma população majoritariamente analfabeta. Enquanto isso, já existiam universidades no Peru (1551) e na Argentina (1613). O Brasil foi o último país da América Latina a criar uma universidade; e não por falta de tempo, mas por vontade política de manter o povo na ignorância.
Em 1920, a primeira universidade significativa do país, a do Rio de Janeiro, nasceu de um constrangimento diplomático: era preciso conceder um título honoris causa ao rei Alberto I da Bélgica, e, para isso, o governo precisou criar uma instituição às pressas. Antes disso, quem podia estudar ia para a Europa. Quem não podia, aprendia com o mundo; mas sem diploma.
Estudo: o privilégio de poucos
Durante o Império, a educação foi pensada para manter o poder, não para distribuí-lo. As escolas de Direito, Medicina e Engenharia eram ilhas de prestígio cercadas por um oceano de analfabetismo. O ensino público, quando existia, era precário e desigual. A República herdou o mesmo vício: falar de modernização, mas negar o acesso à maioria.
No início do século XX, 75% dos brasileiros não sabiam ler. Os filhos dos fazendeiros estudavam francês; os filhos do povo aprendiam a sobreviver. E assim se consolidou um país onde a cultura popular floresceu sem escola, e a elite escolarizada cresceu desvalorizando o saber popular. Essa fratura nunca foi curada. Apenas trocou de roupa.
Cultura: o saber que resiste
Enquanto o Estado ensinava o que devia ser lembrado, o povo guardava o que não podia ser esquecido. A cultura brasileira - mestiça, musical, inventiva - nasceu da resistência. Foi nas senzalas, nos terreiros, nos quilombos e nas feiras que o Brasil aprendeu a pensar com o corpo, a rimar dor com alegria, a transformar ausência em ritmo.
A cultura não precisa de licença para existir. Ela nasce onde a vida pulsa; e onde o estudo, tantas vezes, não chega.
Se a a educação formal é o manual, o saber popular é o gesto. Uma forma, o outro sentido. E toda vez que o estudo ignora a cultura comunitária, vira doutrina; toda vez que a cultura rejeita o estudo, perde o poder de transformação. São modos entrelaçados de cultivar o humano; e nenhum sobrevive sozinho.
A escola e a ferida
Do século XX em diante, o Brasil começou a tentar corrigir o atraso. Educadores como Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire sonharam uma escola libertadora, onde aprender fosse também despertar. Mas o golpe de 1964 reprimiu esse sonho, e o país voltou a ensinar sem permitir pensar. Uma educação tecnicista a serviço dos interesses da direita.
A Constituição de 1988 declarou a educação um direito de todos, mas o abismo já estava cavado. Hoje, cada corte no orçamento, cada ataque à universidade pública, repete o gesto colonial de 500 anos atrás: o de quem teme um povo que pensa.
O que o Brasil ainda não aprendeu
No Brasil, sempre houve dois tipos de alfabetização: a do livro, que forma profissionais; e a da vida, que forma consciências. A primeira cria doutores que não conhecem o próprio país; a segunda, artistas, trabalhadores, mestres de ofício que traduzem o Brasil para o mundo. Quando ambas se encontram, nasce o que deveríamos chamar de educação verdadeira: aquela que cultiva o saber e a sensibilidade ao mesmo tempo. O dia em que o país entender que o tambor e o diploma são instrumentos do mesmo aprendizado — nesse dia, talvez, a palavra “civilização” ganhe sentido por aqui.
O que o estudo e a cultura nos ensina
O estudo nos ensina a nomear o mundo, nos fornece ferramentas para transformá-lo e é parte da cultura de um povo. Nenhuma revolução será completa enquanto o saber continuar sendo privilégio; e não herança. Para que isso aconteça, é necessário compreender a educação como um direito estrutural e não como um recurso acessório. A democratização do conhecimento — em todas as suas formas — é o que permite a formação de sujeitos críticos, capazes de participar plenamente da vida social.
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