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  • Foto do escritorLuiza Pessôa

O indivíduo e o individualismo refletidos na obra de Pina Bausch

Atualizado: 26 de ago. de 2020

O sujeito, pelo qual Pina Bausch se interessava e com o qual trabalhava, não poderia ser outro senão o indivíduo contemporâneo, fruto da consolidação do individualismo moderno que durante o século XX ganhou novos formatos.

A tanztheater de Pina Bausch originou-se no contexto de transformações das décadas de 60 e 70. A Segunda Guerra Mundial marcou o contexto histórico da infância de Pina Bausch. Mas, para entender a obra de Bausch, é preciso voltar um pouco e olhar um movimento artístico originado por outra guerra. Sob os impactos da Primeira Guerra Mundial floresceu o expressionismo alemão, um dos movimentos de vanguarda, fruto de um período em que toda a arte se reinventou em busca de novas linguagens para expressar as necessidades e sentimentos do século XX. Assim, a dança-teatro de Pina Bausch assimila a dança expressionista de Rudolf Von Laban e Kurt Joos, mas toma novos rumos integrados à estética “anárquico-caótica” característica do novo teatro dos anos 60.


O processo criativo de Pina Bausch foi fundamental para que suas obras cumprissem suas propostas expressionistas e de crítica social. Sua maneira de criar revolucionou a história da dança incorporando os dançarinos ao processo de criação. Pina Bausch iniciava suas pesquisas através de dinâmicas de improviso realizadas com seus bailarinos através de temas, perguntas, provocações que deveriam ser “respondidas” através de movimentos técnicos ou gestuais, palavras, frases, etc. Quando questionada sobre suas criações, Bausch sempre declarou seu interesse pelo sujeito.

Imagem de Raphaël Labbé. Pina Bausch com seus bailarinos,
Pina Bausch ao centro - por Raphaël Labbé

Imagem: Raphaël Labbé, disponível em http://tiny.cc/5dsepz


O sujeito, pelo qual Pina Bausch se interessava e com o qual trabalhava, não poderia ser outro senão o indivíduo contemporâneo, fruto da consolidação do individualismo moderno que durante o século XX ganhou novos formatos. Indivíduo que tinha, a essa altura, rompido seus laços com o outro e com o mundo, ao menos ideologicamente. Partindo desse indivíduo, e exatamente porque esse é a sua fonte de pesquisa, a dança-teatro de Pina Bausch reflete os sentimentos desse homem e consequentemente as sequelas da sociedade individualista.

Fragmentação, aceleração, mecanização dos corpos, superficialidade das relações refletem o século XX, refletem o individualismo e refletem e são refletidos na obra de Pina Bausch.

É importante ressaltar que a noção de individualismo constrói-se, historicamente, com a percepção de que cada homem é um indivíduo único, delimitado por seu corpo, com uma identidade definida a partir do seu ser empírico, o qual possui singularidades que o diferem dos outros indivíduos. Essa ideia, apesar de muito naturalizada hoje para os ocidentais, é uma construção histórica relativamente recente. As mudanças na concepção do corpo influenciadas por uma série de fatores históricos, incluindo o desenvolvimento da medicina ocidental; o desenvolvimento tecnológico que resultou na revolução industrial; a construção do pensamento social moderno articulado ao pensamento econômico são fatores que, não apartados uns dos outros, edificaram gradativamente a concepção moderna ocidental de indivíduo. Nessa construção, os conceitos de liberdade, igualdade e individualismo se entrelaçam. Alguns historiadores consideram os aspectos políticos, econômicos e religiosos característicos da modernidade como consolidadores da sociedade individualista, apontando como marcos desse processo a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. No entanto, seria um erro olhar para tais acontecimentos isoladamente.


A gênese do individualismo é plural, e muitos autores, que se debruçaram sobre a trajetória do individualismo, identificaram uma mudança de rumo a partir da segunda metade do século XX. As aceleradas mudanças desse século proporcionaram, mais uma vez, transformações nos valores ocidentais, acarretando uma extrapolação da cosmovisão individualista carregada de novos sentidos, especialmente a partir da década de sessenta.


Fragmentação, aceleração, mecanização dos corpos, superficialidade das relações refletem o século XX, refletem o individualismo e refletem e são refletidos na obra de Pina Bausch. As temáticas recorrentes na obra de Bausch expõem a degradação social do mundo contemporâneo. As frustrações de um sujeito que se acredita livre e capaz de conquistar tudo que deseja, mas que, inevitavelmente, esbarra em limitações sociais; a efemeridade das relações que se estabelecem entre indivíduos que lutam contra os laços sociais; o recorrente estado de solidão; a banalização da violência são algumas das consequências evidentes da sociedade individualista na dança-teatro de Bausch.


Cafe Müller (1978), uma das obras mais aclamadas da coreógrafa, é um sensível retrato da realidade em que se encontra o homem contemporâneo. No palco, o cenário reproduz um ambiente de um bar ou restaurante, com mesas e cadeiras e uma porta giratória ao fundo. A baixa luminosidade contribui para dar uma estética sombria e fria ao cenário. A peça, que dura aproximadamente 45 minutos, retrata indivíduos isolados, solitários, ao mesmo tempo que denuncia, através da padronização de movimentos, as determinações e imposições sociais. O espetáculo não apresenta uma linearidade e não converge para a construção de um sentido ou de uma resolução, configuram-se a fragmentação e o caótico, característicos das obras de Bausch. Não há um conteúdo narrativo. O conteúdo são as próprias relações humanas e, especialmente, as não relações. A solidão faz-se presente nos não encontros observados durante a peça. Cada bailarino parece pairar solitário em seu universo particular. Quando há alguma interação entre personagens, essa se faz através de movimentos repetidos mecanicamente, e a sensação é de que um não percebe ou não se deixa afetar pelo outro. Quando personagens se tocam ou se abraçam, as expressões faciais não transparecem satisfação ou prazer, evidenciando uma desarmonia entre a expressão dos dançarinos e suas ações.


Uma arte que se expressa no sujeito do século XX e a partir dele. Uma arte que se inspira no indivíduo contemporâneo e desenha-se em seus corpos. Os bailarinos de Bausch são a fonte da coreógrafa para compreender o ser humano; são cocriadores de suas peças e são, também, o suporte no qual a dança se materializa. A dialética que se estabelece na dança-teatro de Bausch realiza-se na esfera do indivíduo, através de ferramentas geradas pela sociedade da qual a artista participa e da qual reitera valores, mas a obra de Pina Bausch constitui-se, ao mesmo tempo, como um lugar de resistência e crítica aos efeitos ou consequências desta sociedade individualista.



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