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O objetivo deste artigo é procurar respostas para uma questão que gera dúvidas e discussões. A pergunta “o que é música erudita?” nos leva a uma série de outros questionamentos:
O que significa “música erudita”? O que diferencia “música erudita” de “música popular”? Qual a função histórica dessa distinção? E será que essa diferenciação ainda faz sentido no século XXI?
Essas são algumas das perguntas que tentaremos responder aqui.
Comecemos, pois, o exercício, pela definição da palavra “erudito”. O vocábulo é de origem latina e significa, segundo o dicionário Michaelis: “aquele que tem instrução vasta e variada, que revela muito saber”, ou ainda: “pessoa que tem amplo conhecimento, adquirido, principalmente, por meio de leitura.” Aliás, etimologicamente, a palavra “erudito” tem a ver com a escrita. Assim, percebemos que o conceito de “música erudita” está ligado, inicialmente, à esfera da música escrita e à intelectualidade daqueles que dominavam a escrita da música. A historiografia da música identifica no século X a elaboração do sistema de notação musical, desenvolvido no ambiente eclesiástico. Vale lembrar que a Europa Ocidental não foi a única a elaborar um sistema de notação musical.
No entanto, com o passar dos séculos, o termo foi se transformando e ganhando novos significados e, por que não dizer, funções. A partir do período barroco, a história da música se desenvolveu numa busca por uma autonomia da música em relação ao culto religioso e a outras expressões artísticas. O anseio da época era por uma música que existisse de modo independente dos rituais religiosos ou para compor outras manifestações artísticas. Essa autonomia começou a ser construída no período barroco (1600 – 1750), mas só se consolidou no período seguinte, o período clássico. Naquele momento, a expressão "música erudita", sem se desconectar totalmente do seu sentido original, de música ligada à intelectualidade, referia-se também a essa música autônoma que estava sendo criada na época pelos grandes compositores que dominavam o conhecimento musical e sua escrita.
É, provavelmente essa, a origem da confusão entre os termos “música clássica” e “música erudita”. Atualmente, é comum a utilização da expressão “música clássica” como sinônimo de “música erudita”. No entanto, historicamente, a primeira expressão refere-se à produção musical do período clássico, que vai de 1750 a 1810, já a segunda expressão é mais abrangente e não está relacionada a uma delimitação histórica, apesar de ser influenciada por diferentes contextos, como estamos observando aqui.
Destaca-se também, durante os séculos XVII e XVIII, o esforço extra da nobreza em diferenciar-se das outras classes sociais. A utilização das artes como ferramenta dessa distinção é um projeto recorrente da nobreza na Europa Ocidental daquele período. Assim, o termo “erudito”, seja aplicado à música, à dança ou a outras formas de arte, favorece a distinção entre a arte “nobre” e a arte “popular”. Observa-se, portanto, uma associação do termo não apenas ao conhecimento, mas também à classe social. De qualquer forma, esses são dois aspectos que estão atrelados quando se fala da historicidade do século XVIII ou dos séculos anteriores, em que o acesso ao conhecimento, especialmente escrito, formal ou sistematizado, era restrito às classes dominantes.
Atualmente, não faz mais sentido associar o termo “erudito” à música escrita, sabendo que a escrita da música se difundiu, especialmente após a amplificação do mercado fonográfico no século XX. A música popular não deixa de ser popular só por estar escrita.
Apesar de deixar sequelas sociais históricas, a restrição do conhecimento às classes dominantes diluiu-se com o tempo. E a ascensão da burguesia como consumidora e patrocinadora das artes atraiu os compositores eruditos e dissolveu os limites entre o popular e o erudito. Muitos compositores passaram a transitar por esses dois universos, especialmente após o século XX.
Por tudo isso, a definição se tornou frágil e difícil. Hoje, a expressão gera dúvidas e discussões, talvez por não ser mais suficiente para dar conta da complexidade e da diversidade do cenário musical que se estabeleceu a partir do século XX.
Alguns autores defendem o uso da expressão “música de concerto” em vez de “música erudita”. No entanto, a expressão também não resolve todos os problemas. Para Enio Squeff, reconhecido jornalista, escritor e crítico de música, a música de concerto é inclassificável, pois reúne músicas de estruturas formais totalmente diferentes. O pesquisador Flávio Silva, que defende a manutenção do termo “música erudita”, afirma: “Essa expressão é unívoca, ao contrário de música de concerto, já que abundam os concertos de rock, jazz, funk, axé e DJs.”
Percebe-se que há divergências em relação à questão abordada. Ainda assim, observa-se, hoje, uma preferência pela expressão “música de concerto” talvez por reduzir a ideia de oposição à música popular de uma forma menos dicotômica ou associada a um elitismo.
Gostei do esclarecimento sobre música clássica e música erudita.