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O Choque Cultural como Fratura Estética e Memória Afetiva

  • Foto do escritor: Ao Redor - Cultura e Arte
    Ao Redor - Cultura e Arte
  • há 5 horas
  • 3 min de leitura

O que denominamos choque cultural é, antes de tudo, uma ruptura interna, uma interrupção nos circuitos de sentido com os quais costumamos habitar o mundo. Trata-se de uma experiência de estranhamento radical que revela o quanto nossas práticas, valores e afetos são moldados por estruturas culturais específicas e, portanto, instáveis. Mais que uma simples diferença entre costumes, o choque cultural é um território de suspensão simbólica, onde os sentidos habituais se desfazem e precisam ser reconstruídos, nem sempre sem dor.


No Brasil, país cuja identidade se ergueu sobre o encontro forçado de matrizes africanas, indígenas e europeias, essa experiência de choque não é exceção, mas estrutura. Nossa cultura nasce do atrito, da assimetria, da tentativa constante de traduzir o intraduzível. E é precisamente na arte, na literatura, na música, que esse processo se revela em toda a sua complexidade: como dor, mas também como gesto criador.


Identidade em trânsito: o choque como desvio da memória


No romance Nihonjin, de Oscar Nakasato, o protagonista Hideo Inabata chega ao Brasil com a promessa de retorno ao Japão. O que se desenha, porém, é uma travessia permanente, onde o idioma local se torna obstáculo, e os ritos do cotidiano se tornam ruína. O choque cultural, aqui, se encarna na perda de um lar simbólico; um exílio não apenas geográfico, mas ontológico.


A cultura do outro não o acolhe, mas o suspende. E o que se revela nesse intervalo é a fragilidade de toda identidade baseada em certezas. O corpo, privado de linguagem, torna-se arquivo de deslocamentos.


Esse tipo de choque não se limita à imigração. Ele ecoa também em episódios históricos como a repressão às línguas estrangeiras durante o Estado Novo. A campanha de nacionalização, ao proibir o uso do alemão, do italiano e do japonês, inscreveu no tecido cultural brasileiro a ideia de que há modos “legítimos” de ser nacional, e que os demais devem ser apagados.


A língua, essa primeira morada do sujeito, foi arrancada, criminalizada. O choque cultural, nesse contexto, não foi vivenciado; foi imposto, como política de silenciamento.


Henfil e a ironia do exílio


Em Diário de um Cucaracha, Henfil transforma sua vivência nos Estados Unidos em um relato ácido sobre o desconforto de ser estrangeiro. A música "La Cucaracha", entoada por uma enfermeira ao saber de sua origem latino-americana, não é apenas uma canção popular: torna-se instrumento de zombaria, de redução simbólica. Henfil, com sua verve crítica, nos mostra como o choque cultural, mesmo em contextos urbanos e cosmopolitas, pode ser profundamente solitário. Ao narrar o choque com humor, ele revela sua natureza mais profunda: não é a diferença em si que fere, mas o modo como ela é enquadrada em estruturas de poder.


O som como tradução da tensão: samba, Tropicália e periferia


A música brasileira é talvez a linguagem que mais sensivelmente metabolizou o choque cultural. Não o apagou. Transformou-o em ritmo. O samba, nascido da fricção entre tradições africanas e urbanidade carioca, foi inicialmente criminalizado, vigiado, estigmatizado. Mas sobreviveu, e mais que isso, reconfigurou-se como linguagem nacional. Seu corpo rítmico é, ao mesmo tempo, resistência e negociação. Cada batida carrega a memória de um corpo proibido, de uma voz marginalizada.


A Tropicália, por sua vez, fez do choque cultural uma estética deliberada. Misturando baião com guitarra elétrica, poesia concreta com cultura pop, Caetano Veloso, Gilberto Gil e seus pares produziram não uma síntese, mas uma dissonância proposital.

O choque, nesse caso, não é trauma, mas pulsão criadora. A beleza está na fricção, e não na harmonia.


Nos dias de hoje, o funk e o rap das periferias atualizam essa lógica. Eles são línguas nascidas do abismo, gritos de sujeitos que vivem cotidianamente o choque entre o centro e a margem. São músicas de fronteira, que não pedem permissão para existir.


O choque como gesto de escuta


O choque cultural, em sua essência, é uma provocação ética e estética. Ele nos convida - ou nos força - a sair do conforto dos próprios códigos, a habitar o desconcerto. Mas não se trata de aceitar o outro como um adorno exótico, nem de apagar as diferenças em nome de uma falsa harmonia. Trata-se de ouvir a dissonância, permanecer nela, e permitir que ela nos transforme. A arte brasileira tem feito exatamente isso: ouvido o que dói, cantado o que desafina, escrito o que não cabe nas categorias prontas. Porque é ali, no espaço entre o que éramos e o que ainda não sabemos ser, que pulsa o gesto criador.

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