A Fábrica de Inimigos: como o cinema ocidental molda nossos adversários
- Ao Redor - Cultura e Arte

- há 22 horas
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Da ficção à geopolítica — a colonização cultural através das telas
“Não somos contadores de histórias. Somos descolonizadores da mente.”
— Ousmane Sembène
Há guerras que não se travam com bombas, mas com imagens.
Enquanto o noticiário se ocupa de sanções, invasões e tratados, outra batalha — mais sutil e persistente — vem sendo conduzida há décadas diante de nossos olhos. O cinema, sobretudo o produzido em Hollywood, aprendeu a operar como extensão simbólica da política externa: fabrica inimigos, romantiza heróis, ensina quem deve ser amado e quem merece o medo. É nas telas que o Ocidente prepara psicologicamente o terreno de suas futuras intervenções, ensaiando a narrativa antes da ação.
A colonização cultural não chega de uniforme; chega como entretenimento. Um roteiro bem escrito é capaz de simplificar conflitos, reduzir povos a caricaturas e oferecer ao público uma ilusão de clareza — a confortável sensação de que o mundo é dividido entre mocinhos e vilões. Aos poucos, essa ficção torna-se uma pedagogia do olhar: aprendemos a reconhecer o “bem” pela semelhança com o Ocidente, e o “mal” por tudo aquilo que o contraria.
O árabe fanático, o russo conspirador, o latino narcotraficante — são rostos diferentes de uma mesma engrenagem. O primeiro aparece na esteira da crise do petróleo, o segundo sobrevive à Guerra Fria, o terceiro encarna a ameaça da fronteira sul. Todos, no fundo, são máscaras projetadas sobre o “Outro”. E quanto mais vezes essas máscaras reaparecem, mais reais se tornam. A repetição cria verdade, e a verdade, quando amplificada pela tela, adquire autoridade moral.
Assim, quando a realidade irrompe — um atentado, uma crise, uma guerra — o público já está pronto. Já viu aquilo antes. Já aprendeu quem é culpado, mesmo sem conhecer nomes ou contextos. Filmes como True Lies e The Siege anteciparam o imaginário do terror islâmico antes mesmo de 11 de setembro. Quando os aviões colidiram com as torres, a ficção já havia ensinado como sentir: medo, raiva, consentimento. O “terrorista árabe” já era uma figura familiar, quase íntima.
O mesmo padrão se repete. Nos anos 80, o inimigo soviético era frio e desumanizado — o rosto da ideologia. Com o colapso da URSS, Hollywood sofreu um vácuo narrativo. Era preciso encontrar outro vilão à altura do capitalismo triunfante. Vieram, então, os narcotraficantes latino-americanos, os hackers chineses, os terroristas genéricos do Oriente Médio, os inimigos cósmicos de Independence Day. A ameaça pode mudar de sotaque, de cor, de planeta — mas o eixo permanece: o Ocidente como centro moral do universo.
Por trás dessa maquinaria simbólica há uma pedagogia emocional: aprender a temer para consentir. O cinema treina o olhar para aceitar o inimigo que a política escolher. Um espectador que cresce vendo árabes como terroristas, russos como conspiradores e brasileiros como exóticos violentos, internaliza a hierarquia. Quando a notícia chega, ela apenas confirma o que o cinema já ensinou.
Essa colonização não se dá apenas nas narrativas — mas na própria forma de contar. Hollywood transformou o modo de narrar em um padrão técnico global: ritmo, luz, montagem, moralidade. O que não segue suas regras é rotulado como “alternativo”, “autoral”, “de arte”. A estética torna-se um idioma de poder: quem domina a linguagem do cinema domina também o imaginário.
E há ainda o arquétipo mais duradouro de todos: o inimigo comunista. O embate entre capitalismo e comunismo foi o molde de onde saíram quase todos os outros antagonismos. Nos anos 50 e 60, a ameaça vermelha era pintada como uma força sem rosto, desprovida de alma — de Invasores de Corposaos vilões de 007, o “vermelho” era menos humano e mais vírus ideológico. A paranoia da Guerra Fria não terminou com o Muro de Berlim; apenas mudou de roupa. Hoje, o antigo operário soviético renasce como o executivo chinês com um smartphone, guardando a mesma função simbólica: encarnar o perigo de um sistema coletivista que ameaça a “liberdade” ocidental.
Ao mesmo tempo, o cinema reaprende a reciclar o medo interno. O “socialista doméstico”, o ativista idealista, o professor que questiona — são agora caricaturas de ingenuidade ou ameaça. A palavra “comunista” segue funcionando como sentença moral, traduzindo toda discordância em perigo. Assim, o fantasma ideológico continua em circulação, mais flexível do que nunca.
Mas as imagens hegemônicas sempre encontram espelhos rachados. Do Irã de Asghar Farhadi ao Brasil de Bacurau, surgem narrativas que recusam a simplificação. Farhadi mostra iranianos que amam, mentem, vacilam — humanos, enfim. Bacurau devolve a violência ao colonizador e transforma o sertão em território de insurgência simbólica. Kiarostami, Maria Augusta Ramos, Adirley Queirós: todos operam como antídotos poéticos contra o veneno da homogeneização.
Essas obras, e tantas outras vindas de Bollywood, Nollywood, ou das diásporas espalhadas pelo mundo, fazem mais do que contar histórias locais. Elas descolonizam o olhar. Mostram que o cinema pode ser também campo de cura — onde a imagem deixa de servir ao medo e volta a servir à escuta.
O Brasil, nesse cenário, ocupa um lugar ambíguo: simultaneamente vítima e cúmplice. Filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite projetaram internacionalmente uma imagem que seduz e fere: a favela como espetáculo. Ao mesmo tempo, produções como Rio transformaram o país em caricatura tropical, sem conflitos nem contradições — um cartão-postal globalizado. Bacurau rompe essa lógica, colocando o estrangeiro no papel de invasor e o sertanejo como sujeito político. É um gesto raro de autodefesa simbólica, mas ainda isolado.
A questão que se impõe é: queremos continuar oferecendo versões domesticadas de nós mesmos para consumo externo, ou ousaremos construir narrativas autônomas, capazes de disputar o imaginário global? Entender que cultura é também geopolítica é o primeiro passo para recuperar a voz.
A ficção não é inocente. O cinema ensina a sentir — e o que aprendemos a sentir molda o que consentimos que se faça. Não é coincidência que o Patriot Act pareça saído de Minority Report, nem que a retórica bélica de presidentes soe como falas de blockbuster. O poder das imagens é performativo: o que se imagina possível na tela, torna-se justificável na política.
E há, ainda, um efeito interno, mais sutil: o da autoestima nacional. Povos retratados continuamente como violentos ou corruptos passam a acreditar nessa versão de si mesmos. A ficção se infiltra na identidade. É a vitória final da colonização simbólica — quando não é mais preciso impor a narrativa, porque ela já foi internalizada.
Romper esse ciclo exige um gesto radical de consciência: olhar o filme e perguntar quem está contando essa história, a quem ela serve, e o que ela silencia. Educar o olhar é ato político. Apoiar cineastas que escapam do molde, buscar cinemas de outras geografias, discutir ideologia em sala de aula — tudo isso é parte do mesmo movimento de descolonização.
O cinema pode ser espelho ou corrente. Cabe a nós escolher se queremos enxergar ou apenas refletir o que o poder projeta. Enquanto o Ocidente insistir em manter o monopólio das histórias globais, continuará criando os inimigos que precisa para justificar sua dominação. Nossa tarefa é outra: contar histórias que desarmem — histórias que recusem a lógica do medo e restituam a dignidade dos rostos apagados. Porque, no fim das contas, quem controla a narrativa controla a realidade. E talvez a verdadeira revolução comece quando o olhar se recusa a ser guiado.
Leia também nosso artigo sobre a "Democratização ou Banalização da Arte".
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