O artista: aquele que reinventa realidades; aquele que materializa e torna palpáveis as camadas mais incorpóreas do mundo; aquele que põe sua mão no inatingível e o transforma em matéria que pode ser experimentada pelos sentidos humanos. O problema é que esse caráter meio mágico do artista de transformar e criar realidades acaba se propagando de forma distorcida, dando à profissão uma imagem fantasiosa.
Uma vocação sensorial para captar os vestígios do mundo tem de estar atrelada às habilidades de concretização desses imateriais, ou seja, o fazer artístico requer que a inspiração artística esteja ligada ao conhecimento técnico, teórico e prático, acerca daquela determinada manifestação de arte. E a capacitação técnica exige esforços que não têm nada de mágico.
Estudo, treino, aprimoramento e manutenção constante das habilidades. Mesmo depois de dominar a técnica, um bailarino, por exemplo, precisa continuar seus treinos diários para manter sua forma e sua técnica. E é assim com os cantores, instrumentistas, pintores e demais profissionais das artes. Além disso, assim como em qualquer outra profissão, os artistas encontrarão, ao longo de sua carreira, desafios relacionados a mercado de trabalho, visibilidade, falta de investimentos, etc. Tais dificuldades acentuam-se pelo fato da arte, apesar de ser um setor essencial da sociedade, inerente à experiência humana, ter sua importância negligenciada pelo aparelho público no Brasil.
O artista, depois de trabalhar intensamente em suas criações, muitas vezes sem receber por isso, sabe que seu trabalho está apenas começando e que para realizar seus projetos enfrentará ainda uma série de dificuldades. O mercado da arte é competitivo e com insuficientes recursos para atender à crescente produção artística.
Em um questionário elaborado pela equipe do Ao Redor Cultura e Arte, artistas de diversos segmentos, como dança, teatro, literatura, fotografia, música, performance, artes plásticas responderam sobre suas principais dificuldades profissionais, tendo apontado fatores como:
falta de espaço para expor sua arte;
falta de reconhecimento e valorização profissional;
custos altos para divulgação de seus trabalhos/eventos;
ter que lidar com as tarefas de produção de seus eventos;
dificuldade em ser visto pelo público que consome sua arte;
dificuldade em conseguir investimentos;
dificuldade em captar clientes.
Entre os obstáculos citados acima, a “dificuldade em conseguir investidores” e a “falta de reconhecimento e valorização profissional” foram os mais mencionados, seguidos por “altos custos para a divulgação de seus trabalhos e eventos”, que empatou quantitativamente com a “dificuldade em ter que lidar com as tarefas de produção” que, como sabemos, está também relacionada à falta de investimentos, já que na maior parte das vezes o artista não consegue formar uma equipe para lidar com tais tarefas, acumulando funções que não são referentes à sua profissão.
Não corresponde, portanto, à realidade, o discurso crescente nos últimos tempos de que os investimentos na área da arte e da cultura em geral precisam ser cortados. Dados do IBGE, referentes ao setor cultural entre 2007 e 2018, demonstram que as queixas dos profissionais da arte são relevantes.
Os gastos públicos no setor cultural, consolidados nas três esferas de governo, representaram aproximadamente 0,2% do total das despesas consolidadas da administração pública, para o ano de 2018. O estudo mostra que todas as esferas de governo reduziram suas participações de gastos no setor cultural entre 2011 e 2018. Os governos estaduais e municipais apresentaram quedas destacadas na participação dos gastos públicos com cultura. Estados com gastos representativos em 2011, casos como o de São Paulo e Bahia, reduziram consideravelmente tais despesas em 2018. (Sistema de informações e indicadores culturais: 2007-2018 / IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. - Rio de Janeiro, IBGE, 2019.
Ainda segundo o mesmo relatório do IBGE, o percentual de trabalhadores informais no setor cultural é maior do que em outros setores. Os dados mostram que, em 2018, “apenas na região Sul, o empregado da cultura com carteira assinada apresentava uma participação maior de pessoas (43,3%) do que os trabalhadores por conta própria (37,5%)” (IBGE, 2019), número, ainda assim, muito significativo. Em todo o país, o percentual de trabalhadores informais, no setor cultural, cresceu consideravelmente nos últimos anos atingindo, em 2018, 45,2% (2,4 milhões de trabalhadores).
Além disso, a pesquisa aponta que grande parte desses trabalhadores tem mais de um trabalho. A parcela da população geral que tem mais de um trabalho é percentualmente menor do que no setor cultural. Vale observar aqui que esses dados abrangem não só os artistas, mas todos os profissionais envolvidos no setor cultural.
Ou seja, a maior parte desses trabalhadores da cultura não consegue se sustentar apenas com essa atividade, precisando cumprir jornadas duplas de trabalho para manter suas atividades no setor. Existe um grande impasse na produção artística que é: para conseguir investimentos, o artista precisa ter seu projeto para vender, mas para construí-lo, ele precisa de investimentos. E, aí, a conta não fecha, e muitos projetos de excelente qualidade não se concretizam.
“Muitas vezes não há rendimentos e nem ganhos financeiros, você acaba fazendo troca e tem um retorno somente de ver a exposição da sua arte. É preciso contornar isso, fazer sim a sua arte por amor (o que já fazemos há anos), mas também para receber um valor justo para tal realização profissional” (Milena Passarelli, atuante na área da dança há mais de 10 anos).
As queixas também registradas na pesquisa do Ao Redor relacionadas à “dificuldade em ser visto pelo público que consome sua arte” e à “falta de espaço para expor seus trabalhos” também tiveram percentual significativo na pesquisa. O que nos faz olhar para o atual ambiente de divulgação e exposição hoje propiciado pela internet, aparentemente tão favorecido pelo crescimento das redes sociais e plataformas de streaming, e questionar onde se instalam essas dificuldades de visibilidade.
As próprias ferramentas para criação da arte se multiplicaram, desenvolveram-se tecnologias que facilitam, por exemplo, uma produção audiovisual mais barata, ou a gravação de músicas sem a necessidade de uma grande gravadora. Se, no entanto, essas tecnologias barateiam a produção, também geram maior competitividade e prejudicam certos profissionais que perdem seu espaço. O artista precisa dobrar seus esforços para conquistar seu lugar.
O cenário atual, com o crescimento das redes sociais mais populares, pode causar uma falsa impressão do aumento da visibilidade, pois não basta expor-se ou divulgar-se aleatoriamente. O artista precisa atingir o público interessado propriamente no tipo de arte que ele produz, interessado na sua linguagem e estilo próprios. As tecnologias continuam se desenvolvendo, o marketing digital se reinventa a cada dia numa tentativa de direcionar as propagandas e criar um panorama que não seja apenas de excessos que se perdem nas teias dessas redes. Mas, muitos artistas não conseguem arcar com os custos desse tipo de divulgação.
Em nossa pesquisa, apesar de 100% dos participantes afirmarem utilizar as redes sociais como principal forma de estar em contato com o público, 36,4% dos entrevistados apontaram os altos custos de divulgação como uma de suas principais dificuldades.
Procurando por alternativas, descobrimos uma nova ferramenta criada a partir dessa percepção: o aplicativo musicScope, que é uma rede social voltada exclusivamente para a música e que possibilita que os usuários se conectem com os eventos que atendam às suas preferências musicais e localização. O aplicativo foi pensado e criado por um músico, e, portanto, nasce da percepção das dificuldades de dentro da classe.
Conversamos com os desenvolvedores dessa ferramenta que explicaram que a diferença dessa para outras redes sociais é que, além de ter um foco de interesse, a música, os artistas não precisam ter milhares de seguidores, pois os mecanismos do aplicativo permitem que notificações dos eventos publicados cheguem às pessoas com interesse naquele gênero musical. Uma atualização recente do aplicativo permite também a divulgação de lives para usuários do mundo todo, ou seja, menos quantidade e mais eficiência na comunicação do artista, nesse caso, dos músicos, com o seu público. Uma comunicação mais direta e filtrada, bom para o público e para o artista.
Tecnologias como essa aparecem como impulsionadoras da arte, visando minimizar algumas das dificuldades que foram aqui citadas. Festivais de arte, que também perderam investimentos nos últimos tempos, são outra forma de unir artistas e público de modo mais direto, já que normalmente têm públicos específicos, além de unirem investimentos, beneficiando diversos artistas de uma vez.
O fato é que o artista para sustentar-se através de sua atividade precisa trabalhar dobrado, acumular funções técnicas, burocráticas, de produção e ainda se esforçar para encontrar seu público, ser visto. Torna-se cada vez mais necessário, criar articulações que favoreçam a produção e divulgação artística, articulações que chamem as pessoas ao envolvimento com a arte, projetos que valorizem a arte como fundamental à experiência humana.
São necessários investimentos privados e públicos que estimulem a diversidade artística, que possibilitem uma concorrência mais justa, para que os artistas não sejam engolidos pelas grandes produções de caráter mais comercial, voltadas para as grandes mídias. E que possam receber o devido reconhecimento profissional e retorno financeiro, para que possam viver de sua arte, assim como outros profissionais se sustentam com suas atividades.
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Referências
Sistema de informações e indicadores culturais: 2007-2018 / IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. - Rio de Janeiro, IBGE, 2019
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