Humor como Arma Política: A Estratégia da Extrema-Direita na Banalização do Ódio e Como a Arte Resiste"
- Ao Redor - Cultura e Arte
- 17 de fev.
- 4 min de leitura
Rir é um Ato Político, mas de Que Lado Você Ri?
O Risco do Riso no Contexto Geopolítico Contemporâneo
A ascensão de movimentos de extrema-direita em países como Argentina, EUA, Alemanha e Brasil não é um fenômeno isolado, mas parte de um ciclo histórico que repete estratégias de manipulação cultural. Entre essas estratégias, o uso do humor como instrumento de desumanização de minorias e de consolidação de narrativas autoritárias merece atenção crítica. Mas se o riso pode ser uma arma do ódio, também pode ser um escudo da resistência. Este artigo busca analisar, a partir de uma perspectiva histórico-sociológica, como a banalização de piadas racistas, homofóbicas, antissemitas e misóginas não apenas reflete, mas também alimenta, a normalização de ideologias extremistas – e como a arte, em resposta, reinventa-se como campo de batalha simbólica.
O Humor como Ferramenta de Poder
A relação entre humor e opressão não é nova. No nazismo, por exemplo, revistas como Der Stürmer usavam charges antissemitas que retratavam judeus como figuras grotescas e conspiratórias, associando-os a estereótipos como "avarentos" ou "manipuladores globais". Essas caricaturas não eram apenas propaganda explícita: eram disfarçadas de "humor inocente", uma forma de fazer o ódio parecer trivial. Como observa Victor Klemperer em A Linguagem do Terceiro Reich (1947), a linguagem do regime nazista corrompeu até mesmo o riso, transformando-o em um mecanismo de dessensibilização coletiva.
Na Itália fascista, Mussolini incentivava a circulação de piadas que ridicularizavam dissidentes políticos e grupos étnicos, consolidando a ideia de que "o outro" era inferior ou perigoso. Umberto Eco, em O Fascismo Eterno (1995), lembra que regimes autoritários dependem da criação de um "inimigo comum" – e o humor é uma forma eficaz de transformar esse inimigo em objeto de escárnio.
A resistência, porém, nunca foi passiva. Nos cabarés berlinenses dos anos 1930, artistas como Claire Waldoff desafiavam o nazismo com canções satíricas que zombavam da rigidez do regime. No Brasil da ditadura militar, comediantes como Jô Soares e textos teatrais como Roda Viva (de Chico Buarque) usavam o humor cifrado para escapar da censura e ridicularizar os generais. A arte, mesmo sob repressão, encontrou brechas para transformar o riso em resistência.
A Psicologia do Riso Opressor
O humor que ridiculariza minorias opera em três dimensões interligadas, conforme teorizado por Michael Billig em Laughter and Ridicule (2005):
1. Outrificação (Othering): Piadas baseadas em estereótipos reforçam a divisão entre "nós" (o grupo dominante) e "eles" (os marginalizados). Por exemplo, piadas sobre indígenas como "preguiçosos" ou sobre mulheres como "irracionais" reproduzem hierarquias sociais pré-existentes.
2. Dessensibilização: Quando o ódio é embrulhado em risos, a violência simbólica torna-se aceitável. Um estudo de Sander Gilman em The Jew’s Body (1991) mostra como anedotas antissemitas na Alemanha dos anos 1930 prepararam o terreno para a desumanização física.
3. Silenciamento: Quem critica o humor opressor é acusado de "não ter senso de humor", uma tática clássica para calar vozes dissidentes.
Na geopolítica atual, a extrema-direita adaptou essas estratégias ao ambiente digital. Nos EUA, memes que associam imigrantes latinos a "criminosos" ou "parasitas" viralizam em fóruns como 4chan e Telegram, alimentando retóricas como as de Donald Trump. Na Argentina, o presidente Javier Milei frequentemente usa sarcasmo para atacar movimentos feministas, chamando-os de "zumbis ideológicos" – uma forma de deslegitimar demandas por igualdade. Na Alemanha, o partido AfD dissemina piadas sobre refugiados sírios em campanhas eleitorais, ecoando a estética do Der Stürmer.
Mas a reação artística é proporcional ao avanço do autoritarismo. Na Polônia, onde o governo ultraconservador tenta criminalizar a comunidade LGBTQIA+, o coletivo Stop Bzdurom espalha cartazes e performances satíricas em espaços públicos, confrontando a narrativa estatal. Nos EUA, artistas negros como Hannah Gadsby subvertem piadas opressoras ao expor seu absurdo, enquanto coletivos digitais como @mídianinja, @negrobelchior ou @descoloniza viralizam memes que desmontam o racismo estrutural. A arte, aqui, não é entretenimento: é contra-ataque.
Resistência pelo Riso: Contra-Narrativas e a Reapropriação do Humor
A história da resistência pelo humor é tão antiga quanto a própria opressão. Durante o apartheid na África do Sul, o grupo teatral Serpent Players encenava peças clandestinas que satirizavam o regime, usando o riso como forma de manter a esperança. Na Rússia atual, o coletivo Pussy Riot mistura punk e sátira política para desafiar o autoritarismo de Putin, mesmo sob risco de prisão.
No Brasil, a tradição da charge política é emblemática:
- Carlos Latuff, cartunista cujas obras ironizam milícias e a militarização;
- Laerte Coutinho, que usa quadrinhos para desconstruir estereótipos de gênero;
- Gregório Duvivier, cujo projeto Greg News na HBO combina jornalismo e humor ácido para desmontar fake news da extrema-direita.
Esses artistas não apenas contestam o poder, mas redefinem o que é "engraçado": enquanto a extrema-direita ri de minorias, a resistência ri com elas, transformando a vulnerabilidade em potência coletiva.
Rir é um Ato Político (mas de Que Lado Você Ri?
Em um momento em que a extrema-direita global se fortalece, é urgente questionar: quem é o alvo do seu riso? Piadas que ridicularizam minorias não são "apenas brincadeiras" – são tijolos na construção de um projeto autoritário. Mas a arte nos lembra que há outro caminho: o humor que desmonta hierarquias, que expõe a violência do status quo, que faz rir com os oprimidos, nunca dos oprimidos.
A mesma cultura que serviu ao fascismo ontem pode ser desviada para serviço da liberdade hoje. Cada piada é um microfone – cabe a nós decidir se amplificamos o ódio ou a esperança.
Referências (Sugeridas para Leitura):
- ECO, Umberto. O Fascismo Eterno. 1995.
- STANLEY, Jason. How Fascism Works. 2018.
- BILLIG, Michael. Laughter and Ridicule. 2005.
- SCOTT, James C. Domination and the Arts of Resistance: Hidden Transcripts. 1990.
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