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O mundo não seria mais o mesmo depois da Grande Guerra. E a dança, também não.
A dança moderna tem sua origem ligada às transformações que o mundo presenciou no fim do século XIX e início do século XX, especialmente após a Primeira Guerra Mundial. O mundo não seria mais o mesmo depois da Grande Guerra. Os impactos de um evento dilacerante que causou a morte de aproximadamente 13 milhões de pessoas, entre civis e soldados, não seriam sentidos apenas política ou economicamente.
As artes precisaram se reinventar para expressar as questões do século XX. Todos aos segmentos artísticos passaram por profundas transformações conceituais e estéticas. Expressionismo, dadaísmo, a música dodecafônica e o surrealismo, entre outros, estão inseridos em um conjunto de movimentos ligados a essas transformações e resultantes de uma incessante busca por novas formas para expressar o que já não podia mais ser dito com as linguagens enraizadas no renascimento.
Com a dança não seria diferente. É nesse contexto que identificamos as origens da dança moderna. Assim como aconteceu na pintura ou na música, a dança moderna surgiu questionando os princípios clássicos com suas regras estabelecidas nas academias.
Dentro do balé clássico mesmo, podemos observar reformas que já criticavam certos elementos renascentistas, valorizando as conquistas físicas e a expressividade dos bailarinos ao invés da elegância, como nas propostas de Jean-George Noverre ainda no século XVIII e mais adiante nos “Ballets Russes” de Diaghilev.
Influenciado pelas ideias iluministas que se disseminavam na Europa, Noverre transformou aquela dança sem, no entanto, romper com o clássico. Seria ainda necessário que o mundo passasse por transformações maiores e que a necessidade de expressão emocional ganhasse novas dimensões propiciando a eclosão de uma dança realmente “nova”.
A dança moderna inaugurou caminhos individuais a partir de bailarinos e coreógrafos, cada qual disposto a criar os seus próprios discursos e métodos.
Já na passagem do século XIX para o século XX, Diaghilev criou uma companhia que revolucionou o balé clássico, uniu artistas de vanguarda de diversas áreas como Picasso, Matisse, Stravinsky, Satie, e preparou o terreno para a chegada da dança moderna. Diaghilev propunha um balé provocador, livre das amarras da estética clássica e que explorava temas diferentes e plurais, fugindo dos temas etéreos e recorrentes nos balés românticos. Apesar de inovadores, os “Balés Russos”, de Diaghilev, ainda eram balés.
Podemos citar a dança de Isadora Duncan e as novas propostas desenvolvidas na Denishawn School, criada em Los Angeles em 1915, como precursoras da dança moderna.
Isadora Duncan, em consonância com o que movia a arte em seu tempo, defendia que a dança obedecesse a uma lógica emocional e não a uma lógica mecânica. Mais tarde, essa ideia foi melhor sistematizada por seus sucessores, como Ted Shaw e Martha Graham, que desenvolveram essa ideia identificando anatomicamente, na região do tronco, o ponto de partida para os movimentos que deveriam exprimir, de forma mais verdadeira, as emoções. Isadora questionou as formas artificiais do balé clássico, exaltou os movimentos da natureza, libertou os pés das sapatilhas de ponta tornando-os o ponto de contato com a terra sagrada e cheia de vida. Isadora Duncan, segundo a maioria dos historiadores da dança, inaugurou a dança moderna, apesar de não ter criado uma técnica ou uma escola, o que ficou por conta de Ted Shawn e Ruth Saint-Denis.
Parceiros na vida e na dança, eles criaram a Denishawn School, considerada uma das primeiras escolas onde se desenvolveu uma técnica de dança moderna propriamente. Seus criadores resgataram o caráter religioso e sagrado da dança e se alimentaram da cultura oriental. Ted Shaw desenvolveu um estudo aprofundado do corpo e suas formas de expressar as emoções.
Consolidação: Graham, Wigmam e as várias "Danças Modernas"
A partir daí, defendo que não podemos falar de uma única dança moderna, mas de várias expressões de dança moderna. O século XX viu surgir a dança de Martha Graham, que apesar de ter em sua formação as influências de Duncan e Denishawn, propunha novas mudanças, afirmando que não queria dançar os elementos da natureza, como Isadora ou os deuses hindus, como faziam na Denishawn, mas queria que sua dança falasse “dos problemas do nosso século, onde a máquina perturba os ritmos do gesto humano e onde a guerra fustigou as emoções e desencadeou os instintos” (Graham).
Na Alemanha, Mary Wigmam desenvolveu uma estética bastante diferente e até mesmo contrastante com a estética de Graham. Wigmam apresentava uma concepção diferente do uso do espaço. A dança de Wigmam nasceu densa, trágica, explorando as paixões e os temores humanos, influenciada pelos estudos de movimento de Laban e pela estética do expressionismo alemão. Aqui, vale lembrar que Mary Wigmam criou seu primeiro trabalho em 1919, em uma Alemanha devastada pela primeira Guerra. Como lembra o pensador Roger Garaudy em seu livro “ Dançar a Vida”:
“A dança de Mary Wigmam nasceu da Primeira Guerra Mundial e foi abalada pela Segunda Guerra” (Garaudy).
Assim como Graham divergiu de seus mestres na Denishawn e acabou por criar sua própria corrente, Wigmam, discípula de Laban, também reagiu contra os fundamentos de Laban e seguiu em busca de uma identidade própria.
O fato é que o século XX concebeu uma variedade de expressões de dança partindo de diferentes realidades e proferindo diferentes discursos. O que não deixa de ser uma característica significativa da dança moderna como um todo: a ausência de uma origem comum ou de uma origem coletiva mais ampla, resultante da ideia de expressão individual e livre de princípios preestabelecidos. A dança moderna inaugurou caminhos individuais a partir de bailarinos e coreógrafos, cada qual disposto a criar os seus próprios discursos e métodos. Ela se constitui de diversas expressões de dança que, apesar de guardarem entre si algumas diretrizes filosóficas e formais, diversificam seus discursos, diferentemente do balé clássico que apesar de apresentar transformações ao longo dos séculos e se adaptar a diferentes culturas na França, Russia, Inglaterra, criando escolas com estilos próprios, não perdeu seus princípios fundamentais que permaneceram cristalizados e facilmente identificáveis.
Sobre a autora
Luiza Pessôa é bailarina, coreógrafa e graduada em História com pesquisas na área de história da dança e dança e educação. É autora do curso:
Se esse assunto te interessa você pode querer conhecer o programa do curso:
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