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Foto do escritorAo Redor - Cultura e Arte

Revelação

Atualizado: 20 de abr. de 2021

O menino desceu do ônibus da escola particular animadamente, pulando do primeiro degrau. O sol da manhã tocou em seu rosto cor de chocolate e ele o ergueu, contente. Aquele era um dia muito esperado.


Um mês antes a professora anunciara a surpresa: a turma visitaria o Museu Imperial em Petrópolis. A partir daquele dia, o menino e os seus colegas falavam apenas daquele passeio. A conta de diminuir, o mapa do Brasil e os animais silvestres perderam em muito para os planos para o passeio.


A professora fizera uma apresentação sobre o museu; mostrara fotografias da Sala da Coroa, dos instrumentos musicais, das joias, do berço dourado... Mostrara objetos e quadros que veriam durante a visita.


Durante todo aquele mês, o menino se imaginara percorrendo os corredores com as famosas pantufas. Descobriria como viviam Suas Majestades Imperiais. Quem disse que não havia rei no Brasil?


Quando o dia do passeio chegou, ele já sabia muito sobre o Museu Imperial.


Ao descer do ônibus o menino sentiu-se cercar pela aura de majestade do lugar. Atrás do muro que cercava a propriedade um arvoredo imponente recebia os visitantes. A professora guiou os alunos pelo jardim, mostrando as muitas espécies de árvores, o desenho elegante dos canteiros, as estátuas de mármore... A grandiosidade do museu se mostrou pra o menino e ele dava pequenos saltos, tamanha era a sua excitação.


Então, subiram uma rampa e ele se viu diante do Palácio Imperial. Suspirou ao verificar o tamanho da casa e a beleza de sua construção.


A professora, tão empolgada quanto os alunos, tratou de arrumá-los em fila. Deveriam entrar ordeiramente, sem pressa, falando baixinho.


O menino aceitou os comandos de boa vontade. Logo, logo ele entraria no Museu Imperial!


Na entrada, recebeu a tão falada pantufa. Como todas as outras crianças, deslizou pelo chão de mármore italiano, ignorando seu valor.


A professora, seguida pelos alunos em fila, começou o passeio contando a história de cada peça exibida.


O menino acompanhou atentamente as explicações da professora. Imaginou-se vivendo naquele palácio, andando pelos longos corredores, usando as luxuosas louças de cristal e prata, sentando nos sofás forrados de tecidos finos, ouvindo a música que saía dos fantásticos instrumentos...


E quando chegaram na Sala da Coroa, seu coração deu um salto. Quanto ouro, quantas pedras preciosas! E o traje do Imperador? Impressionou-se junto com os coleguinhas, era tudo tão bonito e luxuoso!


O restante da visita foi um verdadeiro deslumbre. Em cada sala, cada corredor, a história do seu país se mostrava reluzente, bela. Era o primeiro da fila, ansioso por ver mais da história contada por todos aqueles objetos.


A professora parou no meio do corredor e avisou que entrariam numa sala muito especial. Era sobre a Princesa Isabel e sobre a Lei Áurea. O que era a Lei Áurea mesmo? Ah, sim, era sobre a libertação dos escravizados que existiram no Brasil.


Entrou na sala com o mesmo interesse que mostrara durante toda a visita. Era uma sala grande; um quadro imenso mostrava a Princesa Isabel assinando a Lei Áurea.


Um colega o cutucou. Ele já vira os instrumentos de tortura dos escravizados? Não?


O menino seguiu o colega e foi até a vitrine que tomava toda uma parede. Viu as peças de ferro que, um dia, foram usados para castigar os escravizados e franziu os lábios, perguntando-se como a escravidão pudera existir. Um chicote de couro esticava-se sobre um tronco; aquela peça fora utilizada para disciplinar, ferir os pobres escravizados.


Continuou a ver as peças, sentindo compaixão pelos escravizados. O colega o chamou para ver fotografias dos coitados que sofreram tantas humilhações e maus-tratos.


Parou diante das imagens. Olhou a primeira fotografia. E outra. E mais uma. Devia haver algo errado ali. Admirou as outras fotografias. Sim, devia estar muito errado mesmo.


Tocou a vitrine com a mãozinha aberta e comparou com a mão de uma criança escrava que o olhava do passado. A pele era tão escura como a sua. Voltou para as primeiras fotografias. Aquela mulher cansada tinha a mesma cor da pele de sua mãe. O homem de rosto marcado poderia ser seu avô. Mas o avô não tinha um olhar tão triste.


Virou-se e olhou ao redor, procurando outras imagens sobre os escravizados. A pintura grande na parede não mostrava ninguém daquela cor. Outra pintura mostrava uma fila de homens, amarrados um ao outro, as cabeças quase tombadas sobre o peito e encolhidos debaixo de um chicote tão longo quanto aquele da vitrine.


Observou os coleguinhas que olhavam também horrorizados para os instrumentos de terror. Nenhum deles tinha a cor dos escravizados...


O que a professora dissera mesmo? Ah, sim, os escravizados viviam fora da casa, na senzala. E sobre a requintada sala de jantar? A refeição era trazida em caixas de zinco pelos escravizados. E de quem eram todos aqueles rostos que vira pintados em belos quadros? Eram reis, rainhas, príncipes e princesas.


Mas ele vira um quadro diferente. Havia uma pessoa negra, mas... mas... ela carregava uma criança branca.


O menino sentiu um gosto amargo na boca. Ele não seria um príncipe naquela casa. Jamais deitaria no berço dourado. O copo lindamente lapidado em cristal passaria por suas mãos apenas para servir.


Não sabia há quanto tempo fixava o olhar nas fotografias, mas quando a professora o chamou virou o rosto apressadamente, como se estivesse fazendo algo de errado.


Ele percebeu que ela sorria para ele, ainda que seus olhos estivessem sobre os instrumentos de tortura. Afável, a professora o levou até a fila de alunos.


Continuaram a visita, porém ele não vivenciava mais o mesmo encantamento. Havia outras salas, contudo em nenhuma outra surgiram figuras escravizadas como as que vira.


Mais um pouco de tempo e a turma saiu em fileira pela porta do museu. Saltaram como cabritinhos, finalmente livres do passo miúdo e das vozes sussurradas.


O menino estava pensativo. Seus olhos cobriram o espaço ao seu redor. Aquela não podia ser a mesma fachada do prédio, a rampa de pedras irregulares parecia outra e o desenho dos canteiros perdera a sua elegância. Toda a majestade daquele lugar deixara de ser fascinante para ele.


Passou a mão pelo braço e experimentou a sensação de que deixara um pouco de si mesmo naquele museu.


De alguma forma, o mundo havia mudado.


Ergueu o queixo e desceu a rampa, sentindo que a história o acompanhava, passo a passo.


Ele havia mudado.


Autoria de Márcia Leite


Sobre a autora

Márcia Leite

Carioca com alma petropolitana, estou inserida na Educação da cidade desde 2001. Participei de diversos concursos literários da cidade e do Brasil e possuo contos e um livro publicado, O Tempo e a Verdade. Como professora da Rede Municipal, tive o privilégio de lecionar desde a Educação Infantil até a Educação de Jovens e Adultos.

Acompanhe a autora nas redes sociais.

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